A expedição experimental às terras indígenas
Estou agora balançando numa van entre Campo Novo dos Parecis e Tangará da Serra no Mato Grosso. Recém saída das áreas indígenas onde passei os últimos dias, o chacoalhar da estrada vai misturando as referências e lembranças dos momentos que ali vivenciei.
Escrevo no celular. E já penso na dicotomia entre tradição e progresso imposta à cultura indígena de forma tão severa. Como se o estudo, desenvolvimento econômico e acesso à bens e confortos contemporâneos fossem totalmente incompatíveis com a continuidade da cultura, língua, costumes e tradições de uma etnia. Afinal se fosse assim nenhum povo ocidental, hoje já imersos no metaverso, ainda teria suas histórias passadas de geração em geração e suas raízes preservadas.
No entanto isto constitui uma prova difícil para os Haliti Paresi. E mais do que passar sabedoria e conhecimentos para os jovens, os chamados anciões das aldeias parecem precisar manter suas famílias presas no tempo para, aos olhos do homem branco, ainda serem indígenas. Como se sua continuidade dependesse do nosso olhar…
Um povo precisa mesmo usar roupas típicas para propagar sua identidade?
Sr. Narciso, cacique da aldeia Quatro Cachoeiras, nos relatou que além usá-las frequentemente, primeiramente pelo orgulho de suas origens, também porta vestes e cocar como forma de reforçar a presença indígena. Fez disto um meio de declarar e ter sua procedência reconhecida e aceita quando viajou à lugares como São Paulo e Rio de Janeiro, se mantendo o máximo de tempo trajado.
Será que temos que andar com trajes típicos e morar em casas desprovidas de equipamentos atuais para “ provar” e manter nossas raízes? Se assim fosse toda a humanidade seria caricata e seria submetida à “escolha” de não progredir. Estaríamos até o presente momento presos às restrições nada tecnológicas de outrora sob pena de perdemos nossas tradições seculares enquanto povos e famílias. Não existiriam museus, contação de histórias e lendas, bibliotecas, receitas de família e nem a evolução ou releituras de seus objetos e arquitetura, de seus idiomas e trajes, gastronomia e ciência. Tudo se manteria constantemente da mesma forma.
Conhecendo a Cultura Haliti Paresi
Este conceito não precisa ser intrínseco à nenhuma esfera da vida indígena. Nas hatis, como são chamadas as moradias dos Haliti Paresi, e onde dormimos em redes nestas noites em terras indígenas, são feitas a com palha da guariroba, tecidas de forma tradicional. O tronco é uma espécie fibrosa semelhante ao de palmito. Arame e prego são usados hoje, antes era com cipó que se faziam as amarrações. A sustentação central é muito importante é o local onde normalmente são feitas as oferendas aos deuses. Mas contam com Wi-Fi, cozinhas equipadas e algumas com camas confortáveis. Carro na porta. Porta esta que se mantém baixa, para referenciar e agradecer à moradia sempre que nela entramos e saímos.
Nos artesanatos e adereços, que hoje, mesmo produzidos com miçangas e penas muitas vezes compradas na cidade, continuam sendo itens impregnados do saber fazer manual ancestral. Ornamentos e utilidades que além da beleza das formas, cores e função simbolizam o espírito da cultura do povo Paresi.
Nas aldeias a convivência é multigeracional. Os casamentos continuam ocorrendo cedo, e muitas vezes avós tornam a ser pais após o nascimento dos netos. A vida em comunidade facilita processos que para nós brancos são mais difíceis, como dividir tarefas, criar as crianças, aceitar erros, defeitos, evitar preconceitos, compartilhar espaços, dialogar e exercitar a escuta.
Nem sempre foi assim, mas o índio na sua constante evolução, substituiu o arco e a flecha pelo papel e a caneta e quer cada vez mais se integrar à sociedade brasileira à qual deu origem. Fazer parcerias com associações, empresas e entidades que apoiem e deem subsídios para seu desenvolvimento econômico e social, através de atividades como o etnoturismo e as culturas em cooperativa. Proporcionando trabalhos e renda que possam garantir sua cidadania, autonomia e meios para sua subsistência e educação das novas gerações.
Minha Experiência: Vivenciando o território Haliti Paresi
Esta jornada clarificou a relevância das metas e objetivos do povo indígena Haliti Paresi. E, principalmente, da importância de enquanto sociedade respeitarmos e não questionarmos aleatoriamente e colocarmos obstáculos desnecessários à sua autogestão e seu desenvolvimento sustentável.
O simples fato de estar aqui ensina muitas coisas. Além do prazer de ouvir histórias, conselhos, transitar em matas, rios, cachoeiras tão preservadas, tomar banho em águas límpidas também revelam a urgência de cuidar da natureza dando a mesma atenção, nutrição e carinho que damos aos nossos corpos.
Mais do que conhecer um pouco da cultura indígena, meu intuito quando parti com as pessoas que ainda partilham comigo lado a lado esta expedição; tive minha mente e coração abertos sobre o humano, a natureza, a comunidade, a comunhão entre de onde a gente veio e para onde queremos ir. Que destas reflexões e conexões entre passado e futuro, povos e territórios, possamos criar, articular e construir novas perspectivas para a humanidade e o mundo.
*Relato de experiência em viagem de turismo de base comunitária realizada em setembro de 2022 em expedição organizada pela Garupa, ONG que se dedica a fazer do turismo sustentável uma ferramenta para a preservação dos patrimônios culturais e naturais do Brasil; em parceria com a Operação Amazônia Nativa – OPAN organização indigenista pelo fortalecimento do protagonismo indígena; The Nature Conservancy – TNC; e as próprias aldeias Haliti Paresi visitadas no cerrado mato-grossense nesta ocasião: Quatro Cachoeiras, Salto da Mulher e Sacre II
Autora: Arquiteta Maria Fernanda Pereira
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